segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

ESPECIAL HOLANDA 1974: A ARTE DE UM CARROSSEL - PARTE 2: RINUS MICHELS E AJAX: CASAMENTO PERFEITO

Continuando a minha série de posts sobre o Carrossel Holandes, falarei sobre como foi a estadia vitoriosa de Michels no Ajax, como ele começou a desenvolver o até então embrionário "Futebol Total" e analisarei a evolução da equipe e de seus conceitos dentro desse contexto:

PARTE 2: RINUS MICHELS E AJAX: CASAMENTO PERFEITO

Michels estreando no Ajax - Fonte: Site oficial do Ajax


Contratado em 1965, com o time lá embaixo após a saida de Vic Buckingham, Rinus Michels chegou com um ímpeto bem diferente na equipe. Vendo que a situação não estava das melhores, um elenco pouco renovado e com pouca ambição, o técnico logo tratou de mudar a filosofia de treinamento que se tinha no Ajax. De treinos mais soltos e descontraídos, passou-se a ter sessões mais pesadas, uma exigência de disciplina muito maior em prol do coletivo, e um treinador muito mais metódico e rígido, contrastando muito com o estilo brincalhão do Michels jogador e lembrando um pouco o jeitão de seu ex-treinador Jack Reynolds. Com isso, ganhou o apelido de "De Generaal" por seus comandados e que seguiu para todo o resto da sua carreira.

Não foi só o método de treinamento que mudou. Michels vendo que o modelo de jogo anterior estava ineficiente logo tratou de trocar tudo. Do tradicional W-M (3-2-2-3) inglês, que já estava em decadência nos anos 60, passou para o então esquema da moda 4-2-4 que a seleção brasileira de 1958 utilizou e fez sucesso. Observe abaixo como a troca influenciou e muito na ocupação do terreno:



Note como o W-M (em branco), apesar de teoricamente ter superioridade numérica no meio campo, prejudica-se na ocupação dos espaços. A pouca amplitude (largura) do meio campo faz com que a equipe gere muitos espaços no lado oposto (espaços claros nas laterais). Já na defesa (círculo em amarelo), ele gera uma situação de 1 x 2 (1 zagueiro contra dois atacantes centralizados), o que complica e muito a marcação, na época ainda individual, precisando puxar um jogador do meio campo para ao menos igualar numericamente, o que já não é o ideal.

Já em relação ao jeito de jogar, Michels implantou o ideal de Reynolds. Inspirado na Hungria vice-campeã de 1954 comandada por Gustav Sebes, usou-se de um futebol ofensivo, de toque de bola, o "pass-and-move", mobilidade, circulação pelos dois lados visando a tomada do campo adversário. Modelo que levou o time a uma grande arrancada e ao título holandês de 1965-1966. Por ganhar o campeonato, tiveram o direito de disputar a Champions League.

Champions essa que faria esse Ajax dar o primeiro susto no continente europeu. O placar agregado de 5-1 ao gigante da Inglaterra Liverpool mostrou o primeiro espasmo do sucesso que estava por vir. Abaixo, como Rinus montou a equipe, que já contava com um certo gênio que houvera sido promovido dois anos antes, um tal de Johan Cruyff. Notem como os esquemas teoricamente se encaixavam e como o toque de bola rápido e a movimentação exigida pelo técnico fez a diferença contra um time de futebol mais direto como era o Liverpool:


O pressing e a troca de posições intensas que viriam a caracterizar o "Futebol Total" ainda não eram vistos, mas já começavam a dar seus primeiros passos. O primeiro passo de Michels que viria a possibilitar esse inicio de crescimento foi, por incrivel que pareça a contratação de um jogador. Com a saida do capitão Soetekouw após ter feito um gol contra na mesma Champions de 66, o Ajax foi atrás de um novo zagueiro e trouxe o iugoslavo Vasovic.

O libero viria, junto com Michels, a elaborar um conceito que ninguém havia utilizado ainda e que atualmente é muito utilizado. Jogador de muita inteligencia, passou a se utilizar de um simples movimento. Ele, como último homem da equipe, ao invés de correr para trás para defender a meta, ia para frente pressionar o adversario com a bola antes do passe final. Era o primeiro esboço da famosa LINHA DE IMPEDIMENTO que viria a ser uma das principais armas do Carrossel Holandês.

Ultimo homem pressiona o portador e os outros dois se alinham dando um passo a frente antes do passe final.


Esse movimento viria a ser visto com muita ressalva pelos seus companheiros, mas apos verem a eficiência dele, passaram a facilitar e trabalhar para que a linha fosse mais efetiva ainda. Com esse recurso, o campo efetivo de jogo para os adversários ficou bem reduzido e dificultou muitos adversários.

Além de Vasovic, outro ótimo fator individual que ajudou no desenvolvimento do "Futebol Total" foi o estouro da então promessa Cruyff. O jovem começava a se destacar com uma genialidade fora do comum, habilidade, explosão, técnica e capacidade de raciocínio velocíssima. Em 1967, o craque foi o artilheiro do campeonato com 33 gols e se tornava rapidamente o líder do time, além de levar para dentro de campo as recomendações e táticas de Michels, com quem se dava muito bem e discutia sobre fundamentos e espaços do campo constantemente.

Agora, vocês devem estar pensando. Falou-se da LINHA DE IMPEDIMENTO, falou-se do FATOR CRUYFF, dois grandes influenciadores desse time. E as tão famosas e revolucionárias TROCAS DE POSIÇÕES, qual foi o motivo de elas começarem a ocorrer?

Primeiramente, recorramos a dois acontecimentos, por sinal duas finais de Champions seguidas. 

Primeiro caso: Temporada de 1967-1968, final entre Internazionale e Celtic. O time italiano, do mito Helenio Herrera, do famoso Catenaccio, da defesa solida com um líbero por trás de três defesas venceu jogando bem atrás o jogo de passes escocês. Michels assistiu a partida e tomou notas. Uma delas ficou guardada para ele: "Uma defesa com bons zagueiros e bem posicionada só poderia ser quebrada com ondas de ataques massivos". E ficou com uma pergunta na cabeça: "Como fazer uma boa estrutura defensiva sofrer com essas ondas?"

A resposta foi simples, mas a partir da mesma surgiu um novo problema. Como escreveu em seu livro Teambuilding: Road to Sucess: "Tentei arranjar maneiras de conseguir quebrar aquelas barreiras [...] Eu tinha que fazer jogadores de meio e de defesa participarem das ações ofensivas para poder complicar a vida deles. Parece fácil dizendo, mas é um longo caminho a percorrer, já que o mais difícil não é ensinar um lateral a atacar - eles gostam disso - mas sim arranjar e convencer alguém da frente a cobrir o espaço que ele gerou atrás."

A partir da temporada 68-69, viu-se um time muito mais fluido no campo. Trocas de posição tanto horizontais como verticais eram vistas no campo. Podíamos ver o ponta Swart vindo cobrir uma subida do lateral Suurbier, o meia direito Neeskens vir apoiar o lateral esquerdo Van Duivenbode, dentre outros exemplos. Apesar da grande dificuldade inicial em fazer os da frente terem essa consciência, conseguiu-se atingir um nível de COMPENSAÇÕES POSICIONAIS eficiente dentro do 4-2-4 que Michels propunha, com jogadores engajados dentro da ideia de ajudar o companheiro que atacou, cobrindo seu espaço. Surgia aí também mais um conceito que a seleção holandesa viria a usar e abusar na copa: o de ECONOMIA DE ENERGIA, esse que explicarei mais a fundo a frente.

O nível de futebol apresentado foi tão bom que fez com que o Ajax chegasse a final da Champions League do ano. Chegamos ao segundo caso. Milan e Ajax se enfrentavam em Paris. Ambos estavam escalados assim:


Final de jogo, 4 a 1 para os italianos e decepção holandesa. Após tentar insistir no esquema por mais um ano, num empate com o Feyenoord, Michels viu seu time tomar gols que exploraram os dois maiores defeitos de seu sistema de jogo 4-2-4: a recomposição e a inferioridade numérica no meio campo. Vendo isso, usou a perda do título e o empate com o maior adversário como feedback e reajustou seu Ajax recuando um jogador da frente para o meio campo, seguindo os passos do próprio Happel, treinador do rival. Fez-se um teórico 4-3-3 (o sistema que seria a base do Carrossel), que ocupava melhor os espaços do campo, facilitava mais a permuta de posições e adicionava um jogador ao terreno central. Disse teórico pois ele fez uma outra modificação que viria acrescentar e muito ao domínio do campo nas áreas medianas. Rinus estimulou um dos zagueiros, normalmente o parceiro de Vasovic a tomar posições mais adiantadas no terreno em relação a linha defensiva. Com isso, ganhava-se mais um homem no meio e facilitaria-se a conquista do mesmo, formando uma espécie de 1-3-3-3. 



Soma-se essas mudanças táticas a uma renovação no elenco. Limpou o elenco de jogadores que vinham produzindo pouco como o goleiro Bals, o lateral Van Duivenbode, os volantes Pronk e Muller e o atacante Klaas Nuninga, para trazer o bom goleiro Stuy, o bom volante Haan, o ótimo meia Muhren e duas peças que viriam a se tornar chaves nesse Ajax e futuramente na seleção Holandesa: subiram o promissor lateral Ruud Krol e o ótimo meia Johan Neeskens, que viria a ajudar no desenvolvimento de um outro conceito que marcou esse time.

Ele era notável por perseguir ferozmente seus adversários, apertando-os para tentar a recuperação da bola a qualquer custo, chamando seus companheiros para ajudar a dificultar a progressão deles, seja lá onde fosse, em seu campo ou no do adversário. Veja abaixo uma imagem que resume tudo, com ele se atirando a frente da bola para tentar pega-la de volta:



Os jogadores da equipe holandesa viram a entrega que Neeskens dava, e ao ver a eficiência, todos passaram a fazer o mesmo e ajuda-lo quando eram chamados. Somando essa marcação mais firme feita por todos em busca da recuperação da bola (cerrando espaços próximos ao adversário com a pelota) à linha defensiva muito alta quase situada no meio campo, consequência da movimentação de Vasovic, geraram-se dois conceitos que viriam ser a tona de muitos modelos de jogo atuais: o PRESSING e a MARCAÇÃO EM BLOCO ALTO. Dois conceitos que, quando realizados em conjunto, reduzem e muito o campo de atuação do adversário. Prestem atenção nessa dupla de prints abaixo como o Ajax sufoca o adversário no seu campo, estimulados pelo posicionamento avançado de sua defesa e pela incessante vontade de ter a bola nos seus pés:


 Após uma definição melhor dos conceitos citados e uma maturação do modelo de jogo e dos jogadores da equipe, os frutos começaram a ser colhidos em âmbito internacional. Após dominar a Holanda no quatriênio 65-66, 66-67, 67-68 e 68-69, e estimulados pelo título europeu do rival Feyenoord em 1970, o Ajax foi com tudo para ganhar a Champions do ano seguinte. E não deu outra: título em cima do estreante em finais Panathinaikos e glória continental.


Time da final - Krol fora, Cruyff com liberdade para sair da direita e flutuar o campo todo dando campo para o improvisado Neeskens subir e um Van Dijk com bom faro de gol. Fonte:  inthefreerole.com

Após o título, o time relaxou. As cobranças do "Generaal" ficaram mais fortes e isso gerou um desgaste no elenco. Antes que tomasse maiores proporções, Michels recebeu uma proposta do Barcelona e partiu para a Catalunha, encerrando seu ciclo no clube. Mal sabia ele o que 1974 lhe reservava e como o desenvolvimento de suas ideias no "laboratório Ajax" e do "Futebol Total", onde o time tinha condições de ter os 10 de linhas atacando e defendendo com alta intensidade, seria de extrema importância para a criação do que muitos chamam de maior time da história. Antes de terminar o post, fico com a citação de Barry Hulshoff, zagueiro daquele Ajax, definindo em poucas palavras esse estilo de jogo:

 "As pessoas não conseguiam ver que as vezes fazíamos coisas automaticamente. Isso vem do entrosamento de jogar junto por muito tempo. O futebol fica melhor quando fica instintivo. Crescemos juntos como equipe com esse modelo de jogo. Futebol Total significa que um jogador supostamente de ataque pode ajudar na defesa. Você gera espaço, e um companheiro o ocupa. E se a bola não chega, você sai desse espaço e outro companheiro irá ocupá-lo."

Na próxima parte, analisarei o processo de formação da Laranja Mecânica, as duas equipes bases que a formaram e como foram os anos que antecederam aquele sucesso. Abraços!

Por Gabriel Daiha

Fontes:

http://www.holdingmidfield.com/?p=629
http://imortaisdofutebol.com/2012/04/10/esquadrao-imortal-ajax-1970-1973/
http://www.theguardian.com/football/blog/2013/may/22/great-european-cup-teams-ajax
http://inthefreerole.com/tag/rinus-michels/