O Palmeiras chega ao centenário num período em que
sua torcida não tem muito que comemorar.
Por outro lado, uma data como essa serve para que sejam relembradas
glórias que o clube palestrino viveu em sua história e o Verdão,
indubitavelmente, tem muito mais momentos de sucesso do que de fracasso em seus
100 anos.
Relembraremos aqui o time campeão paulista de 1996,
mais especificamente, o jogo do título, em que o Palmeiras recebeu o Santos no saudoso
Parque Antárctica. O Paulistão daquele ano era disputado em dois turnos, com o
campeão do turno enfrentando o do returno em uma eventual final, que seria
desnecessária caso o mesmo time vencesse ambos os turnos, como de fato
aconteceu. O Palmeiras, vencedor do primeiro turno, enfrentaria o Santos, único
time com possibilidades de alcançar o Palestra e ser campeão do segundo. Empate
ou vitória do Verdão garantiriam o título antecipado.
A partida é muito interessante no sentido de
relembrar algumas situações do passado, que hoje não são mais possíveis, como o
Palestra lotado e pulsante, Vanderlei Luxemburgo em grande fase e craques como
Rivaldo, Djalminha, Cafu e Müller, além de Giovanni, pelo lado santista. Hoje,
o futebol brasileiro num todo, talvez tenha menos craques do que o confronto em
questão. Algumas situações também são emblemáticas, como Galvão Bueno
impressionado com a inovadora placa eletrônica do quarto árbitro, a
disponibilidade de tempo técnico de três minutos para o time que deu a saída de
bola, ou a opção de apontar um árbitro estrangeiro, sem relação com o futebol
nacional, para apitar jogo de tamanha relevância. Oscar Ruiz, que se tornaria
um dos árbitros mais importantes do futebol sul-americano no final da década de
90 e início da de 2000, foi o encarregado da partida. À época, o colombiano era
ainda inexperiente, com 26 anos, mas já no quadro da FIFA.
Djalminha, Rivaldo e Luizão, craques em grande fase
com um entrosamento extraordinário (Foto: Agência Estado)
O Palmeiras vivia as glórias da parceria com a
Parmalat e contava com grandes estrelas do futebol brasileiro, inclusive da
Seleção, experimentando se não o auge, mas grandes momentos de suas carreiras.
No mesmo ano, Rivaldo, Amaral, Flávio Conceição e Luizão integrariam o elenco
brasileiro medalhista de bronze nas Olimpíadas de Atlanta. Cafu e Rivaldo
jogariam o Mundial da França, em 1998 e, no pentacampeonato de 2002, ganhariam
a companhia de Júnior e Luizão. Djalminha, o mais talentoso do Palmeiras de
1996, acabaria por ter carreira breve e sem destaque na Seleção por conta de
sua personalidade difícil e problemas extracampo.
O time base da conquista estadual era formado por
Velloso; Cafu, Sandro Blum, Cléber, Júnior; Amaral, Flávio Conceição (Galeano);
Djalminha, Rivaldo; Luizão, Müller. O quarteto ofensivo ficou conhecido como o ‘Ataque
dos 100 gols’, já que o Palmeiras alcançou a incrível marca de 102 gols em 30
jogos no torneio, com uma média impressionante de 3,4 gols por partida.
Mesmo que se valorize a qualidade individual dos
atletas que atingiram o feito inigualável até hoje em campeonatos paulistas, é
importante atentar para Vanderlei Luxemburgo, que conseguiu viabilizar um time
em que essas qualidades se sobressaíssem, ao montar um sistema defensivo
seguro, dentro dos padrões da época, que também fez do Palmeiras a defesa menos
vazada do campeonato, com 19 gols sofridos.
Escalação alviverde para o jogo contra o Santos:
4-2-2-2 tipicamente brasileiro, com volantes carregadores de piano, dois
jogadores para pensar o jogo, um atacante de mobilidade, um centroavante
goleador e laterais predominantemente apoiadores. Ressalva: Apesar de atuar com
frequência, Galeano era reserva. Flávio Conceição era o titular da posição.
4-3-3 santista com intensa movimentação entre Robert, Jameli e Giovanni.
Posição de ‘falso 9’ já era utilizada naquele Santos de Orlando. Movimentação
de Giovanni lembra muito a que Totti executa na Roma atualmente. Camisa 10 da
Vila foi o artilheiro daquele Paulistão, apesar do ‘ataque dos 100 gols’
palmeirense.
Na partida contra o Santos, Galeano ocupou o lugar
de Flávio Conceição como primeiro volante, ou cabeça-de-área, como a posição
era conhecida popularmente, o que diminuiu um pouco a qualidade da saída de
bola, mas acrescentou o espírito guerreiro palestrino que Galeano representava
como poucos. O único integrante do quarteto do ‘ataque dos 100 gols’ que tinha
função defensiva importante era Rivaldo, que, quando o adversário tinha a bola,
fechava pela esquerda uma trinca de meio-campo que também contava com Amaral
pela direita e Galeano à frente da defesa.
Palmeiras em fase defensiva: Rivaldo, em forma física
exuberante, atacava e colaborava no preenchimento de espaços no meio-campo na
mesma intensidade. O mesmo acontecia com Cafu e Júnior nas laterais.
Atualmente, com a predominância dos sistemas derivados do 4-4-2 britânico e,
consequentemente, da recomposição defensiva em linhas, o 4-3-3 teria que se
transformar em 4-1-4-1, com dois jogadores fechando o lado do campo, à frente
dos laterais e ao lado de Amaral e Rivaldo
Mais à frente, a única responsabilidade defensiva
de Djalminha, Luizão e Müller consistia em cercar a saída de bola santista, raramente
provocando situações de pressão. No futebol atual, não seria possível liberar
tantos jogadores da recomposição defensiva. O sistema ideal para que o
Palmeiras de 1996 pudesse alcançar sucesso no futebol compacto e intenso da
atualidade seria o 4-2-3-1, com Djalminha e Müller participando da transição
defensiva pelas laterais.
Djalminha, Luizão e Müller não tinham responsabilidades
muito importantes sem a bola
O Palmeiras, portanto, posicionava-se em um 4-3-3
em fase defensiva, liberando os três jogadores mais avançados de funções na
marcação, para que guardassem fôlego apenas para o ataque, uma constante em
times brasileiros dos anos 90 e 2000 e que muitos defendem até hoje, apesar da
evolução tática do futebol, que exige jogadores versáteis para todas as
posições, com habilidades para realizar diversas funções durante uma mesma partida.
Além dos zagueiros, Rivaldo é talvez o único atleta que se encaixaria no
futebol de alto nível que se joga hoje sem precisar desenvolver novas
características ou mudar de posição.
Palmeiras posicionado em fase de marcação: 4-3-3 com
Rivaldo alinhado a Amaral para ‘morder’ o adversário que tivesse a bola.
Galeano sobrava à frente da defesa. Sem a volta dos jogadores de lado, Cafu
dobrava a marcação com Amaral, e Júnior executava o mesmo movimento do outro
lado, com Rivaldo. Enquanto isso, Djalminha, Luizão e Müller assistiam ao jogo,
esperando a recuperação da bola para darem opção à frente
Embora sem muitas funções defensivas, o trio mais
avançado era de intensa movimentação com a bola nos pés. Rivaldo e Djalminha
eram os principais criadores de jogadas de ataque, tendo sempre a opção de
velocidade de Müller e a subida constante dos laterais. A intensidade com a
qual o Palmeiras atacava dificultava qualquer marcação. Narciso, zagueiro do
Santos, vivia grande fase e fez partida primorosa no Parque Antárctica, mas não
conseguiu impedir a derrota. Como os homens de frente do Santos também não
colaboravam muito com a marcação, os volantes santistas Gallo e Baiano ficavam
sobrecarregados, tendo que conter todas as dobradinhas palmeirenses. Baiano
tinha apenas 17 anos e, no futuro, seria importante no grupo palmeirense que
conseguiu o acesso à Série A, na primeira queda do Verdão, já como
lateral-direito. Quando o Palmeiras atacava pela direita, Djalminha encostava
com Cafu, quando atacava pela esquerda, Júnior e Müller estavam sempre juntos
e, nas ofensivas por dentro, Rivaldo tinha a companhia de Djalminha, o grande
cérebro do time palestrino. Além da qualidade individual, o entrosamento entre
os jogadores de ataque, inclusive os laterais, era espantoso.
Ataque dos 100 gols: Palmeiras atacava com seis homens
em todas as situações, inclusive com laterais apoiando ao mesmo tempo. Perceba
que nenhum dos volantes acompanhava o ataque. Diferente de hoje, naquela época
os volantes tinham responsabilidade quase que exclusiva de defender. Precisavam
preencher o espaço no meio-campo e, ao mesmo tempo, cobrir as laterais
abandonadas pelos alas, que tinham liberdade total para atacar
O apoio constante e simultâneo dos laterais fazia
com que muito espaço surgisse às suas costas nos contra-ataques santistas, principalmente
com os velozes Jameli e Macedo. Estava aí mais uma função importante do volante
brasileiro dos anos 90/2000: a cobertura dos laterais apoiadores, emblematicamente
personificada, neste jogo, por Galeano e Amaral, de atuações impecáveis,
sobretudo Amaral, que é um dos grandes símbolos da execução em excelência da
função de volante, tal como ela era entendida no futebol brasileiro da época. Para
reforçar a tese, no jogo em questão, os quatro volantes foram advertidos com
cartão amarelo por entradas faltosas. Amaral e Galeano, do Palmeiras, e Baiano
e Gallo, do Santos.
Amaral
executando a cobertura de Cafu, que saiu para dar o bote à frente do
meio-campo. O volante palestrino roubaria a bola e sofreria falta do atacante
adversário na sequência do lance
Nesta situação, contra-ataque do Santos pegou defesa
palmeirense totalmente aberta. Transição ofensiva altamente veloz do time da
baixada impossibilitou que Galeano cobrisse o setor de Júnior a tempo de
impedir a investida de Macedo. Espaços dificilmente encontrados no futebol
atual. Mesmo a vantagem do empate e o resultado de 1x0 não fizeram com que o
Palmeiras abdicasse da vocação ofensiva e atacasse cautelosamente
A maior diferença do futebol moderno para o que se
jogava no Brasil nos anos 90 e 2000 está no comparativo de importância entre
qualidades individuais e estratégia de jogo. É necessário combinar as duas,
mas, de fato, o que vem antes? As qualidades individuais até hoje pesam na hora
de optar por um jogador ou outro em uma escalação, mas o dinamismo do futebol
atual faz com que a escolha da estratégia de jogo em si e o encaixe dos atletas
nela sejam mais importantes do que a popular ‘distribuição dos coletes’ para os
melhores. Os meias, por exemplo, eram escolhidos baseado nas características
individuais: passe, drible, velocidade, capacidade de organização (sim!
Os meias organizavam o jogo a partir do meio-campo nos anos 90, não os volantes
a partir da intermediária defensiva, como acontece hoje). Entre os volantes, os
que tinham mais velocidade, preparo físico e capacidade de marcação saíam na
frente, assim como os laterais, que tinham que ter boa técnica para o apoio e condições físicas para voltar para a marcação. Hoje em dia os critérios são
um pouco diferentes. Nem sempre o meia mais habilidoso será o escolhido, por
exemplo. Antes ele precisa ter noção de posicionamento para a recomposição
defensiva e o preenchimento de espaços, além, obviamente, da qualidade para
quebrar um sistema defensivo, que seriam drible, passe, etc. Assim como o
volante, que não precisa mais ser um grande desarmador, mas, sim, combinar senso
de marcação com passe qualificado e capacidade de organização. O atleta, por
mais talentoso que seja, precisa, em primeiro lugar, se encaixar no sistema
tático escolhido pelos técnicos. Há situações em que times se adaptam a
determinado jogador, mas só em casos de extra-craques muito acima da média,
como Messi, Cristiano Ronaldo, Neymar... Testemunhamos outros craques como Robben, Lahm,
Schweinsteiger, Di María e Rooney atuando nas mais diversas posições com o
mesmo empenho e qualidade, porque recebem uma orientação precisa e a executam
para o bem do time, sem deixar de utilizar suas qualidades individuais para
desequilibrar quando têm a bola. Há de haver um equilíbrio nas características.
O atacante não pode só atacar e o volante não pode só marcar. Djalminha, muitas
vezes, caminhava em campo sem contribuir durante os 90 minutos para, em um
lance de gênio, decidir uma partida. Ninguém mais se dá ao luxo de ter um jogador
como esta característica de peladeiro (não entenda em tom depreciativo, é
apenas uma expressão para ilustrar o estilo do grande craque Djalminha, comum
nos anos 90) em um futebol tão intenso como o que é jogado hoje. O ídolo
palmeirense precisaria desenvolver algumas características que ele talvez até
tivesse, mas não lhe eram exigidas. Atualmente, o coletivo vem antes do
individual, e é isso que tem feito o futebol mais competitivo e tornado a
função de técnico cada vez mais importante e difícil de ser desempenhada em
excelência.
Independente das mudanças às quais o futebol passou
durante os últimos 18 anos, o Palmeiras de 1996 não está apenas entre os
grandes times da história do clube, mas sim da história do futebol brasileiro.
O ‘ataque dos 100 gols’ nunca será esquecido, muito menos o trio de volantes Amaral,
Flavio Conceição e Galeano, tão importantes para que Rivaldo, Djalminha, Müller
e Luizão pudessem marcar, somados, 70 gols. Velloso também será lembrado para
sempre como um dos grandes goleiros da história do Palestra, ao lado de nomes
como Marcos, Leão e Oberdan Cattani. Cléber e Sandro Blum, zagueiros que teriam carreiras menos
destacadas do que os outros companheiros do título, também tiveram muita
importância, sendo a sustentação da melhor defesa daquele campeonato paulista,
feito que precisa ser valorizado, especialmente em um time tão ofensivo. Clebão
ainda marcaria 7 gols no campeonato, inclusive o que garantiu o título, do 2x0
contra o Santos. Nas laterais, poucas duplas como Cafu e Júnior serão lembradas
pelo poder de ataque e pela importância que tinham dentro de um sistema de jogo
tão insinuante.
Em suma, o torcedor palmeirense, mesmo passando por
um momento difícil há algum tempo, tem glórias de sobra no passado para ter
orgulho de sair na rua com a camisa alviverde, das mais bonitas e vencedoras do
futebol brasileiro. O time de 96, que conquistou 83 pontos de 90 possíveis no
Paulistão, é apenas um dos muitos times históricos que a Academia formou e que
contribuíram tanto para o futebol brasileiro ser o mais admirado do planeta. Se
hoje o mundo se pergunta onde foi parar o futebol brasileiro, que perdeu de 7x1
pra Alemanha, é por causa de times como o Palmeiras de 1996.
Parabéns pelo centenário, torcida palestrina, e
obrigado por tudo que a Sociedade Esportiva Palmeiras já fez pelo futebol
brasileiro. Que venham mais 100 anos de glória!
Palmeiras 2x0 Santos
FICHA TÉCNICA:
Data: 2 de junho de 1996
Campeonato Paulista – 2º turno
Local: Palestra Itália (São Paulo)
Árbitro: Oscar Ruiz (Colombia)
Renda: 302.115,00
Público: 27.000
PALMEIRAS: 1.Velloso; 2.Cafu (c), 13.Sandro Blum,
4.Cléber (3.Cláudio), 6.Júnior (18.Elivélton); 8.Amaral (23.Marquinhos),
17.Galeano; 10.Djalminha, 11.Rivaldo; 9.Luizão, 7.Müller. Téc.: Vanderlei
Luxemburgo.
SANTOS: 1.Edinho; 4.Cláudio, 2.Sandro, 6.Narciso,
3.Marcos Adriano; 27.Baiano, 5.Gallo (c); 11.Robert (16.Camanducaia); 17.Macedo
(22.Nando), 10.Giovanni, 9.Jameli. Téc.: Orlando ‘Lelé’ Pereira.
Cartões amarelos: Galeano, Amaral, Djalminha,
Luizão e Júnior (Palmeiras); Narciso, Baiano, Giovanni, Gallo e Macedo
(Santos).
Cartões vermelhos: Edinho (Santos).
Gols:
Luizão e Cléber (Palmeiras)
Por João Marcos Soares (@JoaoMarcos__)