domingo, 24 de agosto de 2014

[Especial Centenário Alviverde] Palmeiras 2x0 Santos: o jogo que coroou a melhor campanha da história do Paulistão

O Palmeiras chega ao centenário num período em que sua torcida não tem muito que comemorar.  Por outro lado, uma data como essa serve para que sejam relembradas glórias que o clube palestrino viveu em sua história e o Verdão, indubitavelmente, tem muito mais momentos de sucesso do que de fracasso em seus 100 anos.

Relembraremos aqui o time campeão paulista de 1996, mais especificamente, o jogo do título, em que o Palmeiras recebeu o Santos no saudoso Parque Antárctica. O Paulistão daquele ano era disputado em dois turnos, com o campeão do turno enfrentando o do returno em uma eventual final, que seria desnecessária caso o mesmo time vencesse ambos os turnos, como de fato aconteceu. O Palmeiras, vencedor do primeiro turno, enfrentaria o Santos, único time com possibilidades de alcançar o Palestra e ser campeão do segundo. Empate ou vitória do Verdão garantiriam o título antecipado.

A partida é muito interessante no sentido de relembrar algumas situações do passado, que hoje não são mais possíveis, como o Palestra lotado e pulsante, Vanderlei Luxemburgo em grande fase e craques como Rivaldo, Djalminha, Cafu e Müller, além de Giovanni, pelo lado santista. Hoje, o futebol brasileiro num todo, talvez tenha menos craques do que o confronto em questão. Algumas situações também são emblemáticas, como Galvão Bueno impressionado com a inovadora placa eletrônica do quarto árbitro, a disponibilidade de tempo técnico de três minutos para o time que deu a saída de bola, ou a opção de apontar um árbitro estrangeiro, sem relação com o futebol nacional, para apitar jogo de tamanha relevância. Oscar Ruiz, que se tornaria um dos árbitros mais importantes do futebol sul-americano no final da década de 90 e início da de 2000, foi o encarregado da partida. À época, o colombiano era ainda inexperiente, com 26 anos, mas já no quadro da FIFA.

Djalminha, Rivaldo e Luizão, craques em grande fase com um entrosamento extraordinário (Foto: Agência Estado)

O Palmeiras vivia as glórias da parceria com a Parmalat e contava com grandes estrelas do futebol brasileiro, inclusive da Seleção, experimentando se não o auge, mas grandes momentos de suas carreiras. No mesmo ano, Rivaldo, Amaral, Flávio Conceição e Luizão integrariam o elenco brasileiro medalhista de bronze nas Olimpíadas de Atlanta. Cafu e Rivaldo jogariam o Mundial da França, em 1998 e, no pentacampeonato de 2002, ganhariam a companhia de Júnior e Luizão. Djalminha, o mais talentoso do Palmeiras de 1996, acabaria por ter carreira breve e sem destaque na Seleção por conta de sua personalidade difícil e problemas extracampo.

O time base da conquista estadual era formado por Velloso; Cafu, Sandro Blum, Cléber, Júnior; Amaral, Flávio Conceição (Galeano); Djalminha, Rivaldo; Luizão, Müller. O quarteto ofensivo ficou conhecido como o ‘Ataque dos 100 gols’, já que o Palmeiras alcançou a incrível marca de 102 gols em 30 jogos no torneio, com uma média impressionante de 3,4 gols por partida.

Mesmo que se valorize a qualidade individual dos atletas que atingiram o feito inigualável até hoje em campeonatos paulistas, é importante atentar para Vanderlei Luxemburgo, que conseguiu viabilizar um time em que essas qualidades se sobressaíssem, ao montar um sistema defensivo seguro, dentro dos padrões da época, que também fez do Palmeiras a defesa menos vazada do campeonato, com 19 gols sofridos.

Escalação alviverde para o jogo contra o Santos: 4-2-2-2 tipicamente brasileiro, com volantes carregadores de piano, dois jogadores para pensar o jogo, um atacante de mobilidade, um centroavante goleador e laterais predominantemente apoiadores. Ressalva: Apesar de atuar com frequência, Galeano era reserva. Flávio Conceição era o titular da posição. 4-3-3 santista com intensa movimentação entre Robert, Jameli e Giovanni. Posição de ‘falso 9’ já era utilizada naquele Santos de Orlando. Movimentação de Giovanni lembra muito a que Totti executa na Roma atualmente. Camisa 10 da Vila foi o artilheiro daquele Paulistão, apesar do ‘ataque dos 100 gols’ palmeirense.

Na partida contra o Santos, Galeano ocupou o lugar de Flávio Conceição como primeiro volante, ou cabeça-de-área, como a posição era conhecida popularmente, o que diminuiu um pouco a qualidade da saída de bola, mas acrescentou o espírito guerreiro palestrino que Galeano representava como poucos. O único integrante do quarteto do ‘ataque dos 100 gols’ que tinha função defensiva importante era Rivaldo, que, quando o adversário tinha a bola, fechava pela esquerda uma trinca de meio-campo que também contava com Amaral pela direita e Galeano à frente da defesa.

Palmeiras em fase defensiva: Rivaldo, em forma física exuberante, atacava e colaborava no preenchimento de espaços no meio-campo na mesma intensidade. O mesmo acontecia com Cafu e Júnior nas laterais. Atualmente, com a predominância dos sistemas derivados do 4-4-2 britânico e, consequentemente, da recomposição defensiva em linhas, o 4-3-3 teria que se transformar em 4-1-4-1, com dois jogadores fechando o lado do campo, à frente dos laterais e ao lado de Amaral e Rivaldo

Mais à frente, a única responsabilidade defensiva de Djalminha, Luizão e Müller consistia em cercar a saída de bola santista, raramente provocando situações de pressão. No futebol atual, não seria possível liberar tantos jogadores da recomposição defensiva. O sistema ideal para que o Palmeiras de 1996 pudesse alcançar sucesso no futebol compacto e intenso da atualidade seria o 4-2-3-1, com Djalminha e Müller participando da transição defensiva pelas laterais.

Djalminha, Luizão e Müller não tinham responsabilidades muito importantes sem a bola

O Palmeiras, portanto, posicionava-se em um 4-3-3 em fase defensiva, liberando os três jogadores mais avançados de funções na marcação, para que guardassem fôlego apenas para o ataque, uma constante em times brasileiros dos anos 90 e 2000 e que muitos defendem até hoje, apesar da evolução tática do futebol, que exige jogadores versáteis para todas as posições, com habilidades para realizar diversas funções durante uma mesma partida. Além dos zagueiros, Rivaldo é talvez o único atleta que se encaixaria no futebol de alto nível que se joga hoje sem precisar desenvolver novas características ou mudar de posição.

Palmeiras posicionado em fase de marcação: 4-3-3 com Rivaldo alinhado a Amaral para ‘morder’ o adversário que tivesse a bola. Galeano sobrava à frente da defesa. Sem a volta dos jogadores de lado, Cafu dobrava a marcação com Amaral, e Júnior executava o mesmo movimento do outro lado, com Rivaldo. Enquanto isso, Djalminha, Luizão e Müller assistiam ao jogo, esperando a recuperação da bola para darem opção à frente

Embora sem muitas funções defensivas, o trio mais avançado era de intensa movimentação com a bola nos pés. Rivaldo e Djalminha eram os principais criadores de jogadas de ataque, tendo sempre a opção de velocidade de Müller e a subida constante dos laterais. A intensidade com a qual o Palmeiras atacava dificultava qualquer marcação. Narciso, zagueiro do Santos, vivia grande fase e fez partida primorosa no Parque Antárctica, mas não conseguiu impedir a derrota. Como os homens de frente do Santos também não colaboravam muito com a marcação, os volantes santistas Gallo e Baiano ficavam sobrecarregados, tendo que conter todas as dobradinhas palmeirenses. Baiano tinha apenas 17 anos e, no futuro, seria importante no grupo palmeirense que conseguiu o acesso à Série A, na primeira queda do Verdão, já como lateral-direito. Quando o Palmeiras atacava pela direita, Djalminha encostava com Cafu, quando atacava pela esquerda, Júnior e Müller estavam sempre juntos e, nas ofensivas por dentro, Rivaldo tinha a companhia de Djalminha, o grande cérebro do time palestrino. Além da qualidade individual, o entrosamento entre os jogadores de ataque, inclusive os laterais, era espantoso.

Ataque dos 100 gols: Palmeiras atacava com seis homens em todas as situações, inclusive com laterais apoiando ao mesmo tempo. Perceba que nenhum dos volantes acompanhava o ataque. Diferente de hoje, naquela época os volantes tinham responsabilidade quase que exclusiva de defender. Precisavam preencher o espaço no meio-campo e, ao mesmo tempo, cobrir as laterais abandonadas pelos alas, que tinham liberdade total para atacar

O apoio constante e simultâneo dos laterais fazia com que muito espaço surgisse às suas costas nos contra-ataques santistas, principalmente com os velozes Jameli e Macedo. Estava aí mais uma função importante do volante brasileiro dos anos 90/2000: a cobertura dos laterais apoiadores, emblematicamente personificada, neste jogo, por Galeano e Amaral, de atuações impecáveis, sobretudo Amaral, que é um dos grandes símbolos da execução em excelência da função de volante, tal como ela era entendida no futebol brasileiro da época. Para reforçar a tese, no jogo em questão, os quatro volantes foram advertidos com cartão amarelo por entradas faltosas. Amaral e Galeano, do Palmeiras, e Baiano e Gallo, do Santos.

Amaral executando a cobertura de Cafu, que saiu para dar o bote à frente do meio-campo. O volante palestrino roubaria a bola e sofreria falta do atacante adversário na sequência do lance

Nesta situação, contra-ataque do Santos pegou defesa palmeirense totalmente aberta. Transição ofensiva altamente veloz do time da baixada impossibilitou que Galeano cobrisse o setor de Júnior a tempo de impedir a investida de Macedo. Espaços dificilmente encontrados no futebol atual. Mesmo a vantagem do empate e o resultado de 1x0 não fizeram com que o Palmeiras abdicasse da vocação ofensiva e atacasse cautelosamente

A maior diferença do futebol moderno para o que se jogava no Brasil nos anos 90 e 2000 está no comparativo de importância entre qualidades individuais e estratégia de jogo. É necessário combinar as duas, mas, de fato, o que vem antes? As qualidades individuais até hoje pesam na hora de optar por um jogador ou outro em uma escalação, mas o dinamismo do futebol atual faz com que a escolha da estratégia de jogo em si e o encaixe dos atletas nela sejam mais importantes do que a popular ‘distribuição dos coletes’ para os melhores. Os meias, por exemplo, eram escolhidos baseado nas características individuais: passe, drible, velocidade, capacidade de organização (sim! Os meias organizavam o jogo a partir do meio-campo nos anos 90, não os volantes a partir da intermediária defensiva, como acontece hoje). Entre os volantes, os que tinham mais velocidade, preparo físico e capacidade de marcação saíam na frente, assim como os laterais, que tinham que ter boa técnica para o apoio e condições físicas para voltar para a marcação. Hoje em dia os critérios são um pouco diferentes. Nem sempre o meia mais habilidoso será o escolhido, por exemplo. Antes ele precisa ter noção de posicionamento para a recomposição defensiva e o preenchimento de espaços, além, obviamente, da qualidade para quebrar um sistema defensivo, que seriam drible, passe, etc. Assim como o volante, que não precisa mais ser um grande desarmador, mas, sim, combinar senso de marcação com passe qualificado e capacidade de organização. O atleta, por mais talentoso que seja, precisa, em primeiro lugar, se encaixar no sistema tático escolhido pelos técnicos. Há situações em que times se adaptam a determinado jogador, mas só em casos de extra-craques muito acima da média, como Messi, Cristiano Ronaldo, Neymar... Testemunhamos outros craques como Robben, Lahm, Schweinsteiger, Di María e Rooney atuando nas mais diversas posições com o mesmo empenho e qualidade, porque recebem uma orientação precisa e a executam para o bem do time, sem deixar de utilizar suas qualidades individuais para desequilibrar quando têm a bola. Há de haver um equilíbrio nas características. O atacante não pode só atacar e o volante não pode só marcar. Djalminha, muitas vezes, caminhava em campo sem contribuir durante os 90 minutos para, em um lance de gênio, decidir uma partida. Ninguém mais se dá ao luxo de ter um jogador como esta característica de peladeiro (não entenda em tom depreciativo, é apenas uma expressão para ilustrar o estilo do grande craque Djalminha, comum nos anos 90) em um futebol tão intenso como o que é jogado hoje. O ídolo palmeirense precisaria desenvolver algumas características que ele talvez até tivesse, mas não lhe eram exigidas. Atualmente, o coletivo vem antes do individual, e é isso que tem feito o futebol mais competitivo e tornado a função de técnico cada vez mais importante e difícil de ser desempenhada em excelência.

Independente das mudanças às quais o futebol passou durante os últimos 18 anos, o Palmeiras de 1996 não está apenas entre os grandes times da história do clube, mas sim da história do futebol brasileiro. O ‘ataque dos 100 gols’ nunca será esquecido, muito menos o trio de volantes Amaral, Flavio Conceição e Galeano, tão importantes para que Rivaldo, Djalminha, Müller e Luizão pudessem marcar, somados, 70 gols. Velloso também será lembrado para sempre como um dos grandes goleiros da história do Palestra, ao lado de nomes como Marcos, Leão e Oberdan Cattani. Cléber e Sandro Blum, zagueiros que teriam carreiras menos destacadas do que os outros companheiros do título, também tiveram muita importância, sendo a sustentação da melhor defesa daquele campeonato paulista, feito que precisa ser valorizado, especialmente em um time tão ofensivo. Clebão ainda marcaria 7 gols no campeonato, inclusive o que garantiu o título, do 2x0 contra o Santos. Nas laterais, poucas duplas como Cafu e Júnior serão lembradas pelo poder de ataque e pela importância que tinham dentro de um sistema de jogo tão insinuante.

Em suma, o torcedor palmeirense, mesmo passando por um momento difícil há algum tempo, tem glórias de sobra no passado para ter orgulho de sair na rua com a camisa alviverde, das mais bonitas e vencedoras do futebol brasileiro. O time de 96, que conquistou 83 pontos de 90 possíveis no Paulistão, é apenas um dos muitos times históricos que a Academia formou e que contribuíram tanto para o futebol brasileiro ser o mais admirado do planeta. Se hoje o mundo se pergunta onde foi parar o futebol brasileiro, que perdeu de 7x1 pra Alemanha, é por causa de times como o Palmeiras de 1996.

Parabéns pelo centenário, torcida palestrina, e obrigado por tudo que a Sociedade Esportiva Palmeiras já fez pelo futebol brasileiro. Que venham mais 100 anos de glória!


Palmeiras 2x0 Santos

FICHA TÉCNICA:

Data: 2 de junho de 1996
Campeonato Paulista – 2º turno
Local: Palestra Itália (São Paulo)
Árbitro: Oscar Ruiz (Colombia)
Renda: 302.115,00
Público: 27.000

PALMEIRAS: 1.Velloso; 2.Cafu (c), 13.Sandro Blum, 4.Cléber (3.Cláudio), 6.Júnior (18.Elivélton); 8.Amaral (23.Marquinhos), 17.Galeano; 10.Djalminha, 11.Rivaldo; 9.Luizão, 7.Müller. Téc.: Vanderlei Luxemburgo.

SANTOS: 1.Edinho; 4.Cláudio, 2.Sandro, 6.Narciso, 3.Marcos Adriano; 27.Baiano, 5.Gallo (c); 11.Robert (16.Camanducaia); 17.Macedo (22.Nando), 10.Giovanni, 9.Jameli. Téc.: Orlando ‘Lelé’ Pereira.

Cartões amarelos: Galeano, Amaral, Djalminha, Luizão e Júnior (Palmeiras); Narciso, Baiano, Giovanni, Gallo e Macedo (Santos).

Cartões vermelhos: Edinho (Santos).

Gols: Luizão e Cléber (Palmeiras)

Por João Marcos Soares (@JoaoMarcos__)