segunda-feira, 25 de agosto de 2014

RESENHA TÁTICA #1 - Fluminense 4 x 0 Sport: Renato, Cristóvão e o dilema da modernidade

Depois do 7 a 1 diante da Alemanha, quase todas as análises dos times brasileiros, atuais ou históricas, traçam em sua pauta um paralelo entre o que está acontecendo por aqui e o nosso alegado atraso tático perante ao futebol europeu, tido como moderno, intenso, estratégico e maleável, sem as malsinadas compensações obsoletas. Quando o SPFC venceu o Inter, por exemplo, o foco não foi o jogo, mas jogadores como Kaká e Ganso se doando e alocados como preceitua o futebol moderno.

Renato Gaúcho é tido como um treinador boleiro e ultrapassado. No início do ano, iniciou o trabalho usando o 4-2-3-1 com Conca na meia central e Sóbis jogando como um extremo que se portava como atacante quando o time tinha a bola. Entretanto, o esquema da moda não agradava Renato. Em sua concepção, a recomposição de Sóbis não era satisfatória e obrigava Conca marcar muito. Como a defesa era frágil e o time tinha Sóbis, Walter e Fred no elenco, além de Conca, não resistiu ao 4-3-1-2.


E o problema não foi o 4-4-2 losango, mas sim sua execução pálida e obsoleta. Nada de novo em nenhuma das transições. Renato não conseguiu fazer o time jogar e a derrota para o Horizonte do Ceará por 3 x 0 na Copa do Brasil foi o estopim. Após a campanha ruim no Carioca, caiu o treinador motivador e o Fluminense foi atrás de um comandante mais estudioso e atualizado. No início de abril, Cristóvão Borges foi anunciado como o novo técnico do tricolor carioca.

Estreia no carioca (18/01) Fluminense 2 x 3 Madureira: tricolor no 4-2-3-1 assimétrico com Sóbis de atacante e recompondo pouco. Wagner e Conca faziam o balanço defensivo. O esquema não agradou Renato. Eram necessárias, em sua concepção, muitas compensações táticas.
Estreia no carioca (18/01) Fluminense 2 x 3 Madureira: Não satisfeito com a recomposição de Sóbis, Renato usou uma variação tática constante: do 4-2-3-1 para o 4-4-2 britânico. Percebam Sóbis e Maicon como atacantes e Conca habitando uma falsa linha pelo meio. Na verdade, Wagner era meia e Sóbis atacante, não eram extremos. Ou seja, o esquema em tese era o 4-2-3-1, o que na verdade nunca foi.

Contra o Nova Iguaçu (26/01), Renato assumiu o 4-3-1-2 em sua forma mais óbvia. Dava para se sentir na década de 90, sem nenhum exagero.

Flagrante do losango tricolor contra o Nova Iguaçu.


Com a bola, o Flu alocava Valencia entre os zagueiros e liberava Carlinhos e Bruno para subirem ao ataque quase como ponteiros. Os alas jogavam alinhados, assim como Sóbis e Conca no setor de criação. A diferença é que o argentino buscava mais o centro para criar, enquanto Sóbis circulava mais, caindo pelos dois lados como um segundo atacante. Renato esbravejava sempre para Valencia na beira de campo: “Deixe o Jean mais solto e faça a cobertura dos laterais”. O 4-3-1-2 ia cada vez se transformando em um 3-4-1-2, tão óbvio quanto o losango padrão do qual eventualmente nascia.
Saiu Renato que via os volantes como, primeiramente, destruidores das jogadas adversárias e entrou Cristóvão, técnico que gosta de ver os volantes e meias atuando intensamente na transição ofensiva. A esperança era um time mais moderno, objetivo e equânime. Após sair do Vasco, Cristóvão dedicou mais de seis meses a um grupo de estudos. Nele, definiu várias coisas, como um método de treinamento. No dia 04 de agosto de 2013, ao se destacar em sua volta no Bahia deu uma entrevista sensacional.

“GLOBOESPORTE.COM: Depois que saiu do Vasco, você passou seis meses sem treinar nenhum clube. Em entrevistas recentes, você afirma que passou esse período estudando. O que exatamente foi alvo de seus estudos?

Cristóvão Borges: Eu estudei métodos de treinamento. Tenho um método de treinamento, claro, que é o que eu trabalhava no Vasco. Eu procurei aperfeiçoar esse método para atingir aquilo que penso do futebol, aquilo que quero que um time que treino faça. Eu vejo que aqui no Brasil, a gente precisa dar uma melhorada nessa questão. Fui justamente pesquisar e estudar treinamentos, olhar como se está treinando e jogando nos melhores campeonatos do mundo. Pesquisei bastante, li muito, assisti muitos vídeos. Justamente para isso. Me preparei, busquei aperfeiçoar meus métodos. Aí apareceu o Bahia.


GLOBOESPORTE.COM: Houve algum foco específico na parte técnica ou tática?

Cristóvão Borges: Foi geral. Tanto na parte técnica quanto tática. Para melhorar o desempenho do time, jogar com melhor qualidade, melhor nível, errando menos passes. Também para ter um posicionamento mais compacto, uma equipe mais disciplinada taticamente. Foi basicamente isto que busquei nos meus estudos.

GLOBOESPORTE.COM: O que você via na fórmula antiga que você considerava que não estava certa ou que poderia melhorar?

Cristóvão Borges: Começa pelos passes. Aqui se troca poucos passes e se erra muito, algumas vezes passes fáceis. Claro que isso se deve também a qualidade dos campos no país. Acho que com as arenas mais modernas isso tende a melhorar. Já vimos que a qualidade do jogo melhora nesses estádios. Era o que me incomodava bastante. Outra coisa é questão de posicionamento, a forma que os times jogavam de forma mais espaçada. Queria que minha equipe jogasse em compactação, com as linhas mais próximas. Isso que eu desejo e para isso que eu trabalho.

GLOBOESPORTE.COM: Você fala da valorização dos passes, algo que a escola espanhola, com o Barcelona e a seleção, tem feito bastante. Eles serviram de referência?

Cristóvão Borges: A Espanha, pela qualidade de passe, mas não é único modelo. Temos o Bayern de Munique e o Borussia Dortmund, que também têm qualidade na troca de passes, intensidade de jogo, velocidade e força. São essas coisas que a gente procura aproximar. Trabalhar de uma forma aqui no Brasil com algumas coisas que eles fazem, adaptadas para a nossa realidade, para o estilo de nossos jogadores. Foi isso que fui estudar, para trazer algumas coisas que pudessem beneficiar meu trabalho daquilo que entendo que uma equipe pode fazer para jogar de forma eficiente.
GLOBOESPORTE.COM: Recentemente o presidente do São Paulo, Juvenal Juvêncio, e o técnico Paulo Autuori criticaram os técnicos brasileiros, que estariam ultrapassados. Você concorda com esse pensamento?

Cristóvão Borges: Acho que tem um pouco de exagero. Os treinadores brasileiros são muito bons. Acho que em qualquer profissão existe a necessidade de aperfeiçoamento, de reciclagem, de avaliação. Foi isso que fiz. Avaliei o que tinha acontecido comigo no período que fiquei no Vasco. Na minha avaliação, precisava colocar algumas coisas em questão e fui buscar. É mais uma questão pessoal e acho que esse tempo parado foi muito bom. Vi que precisava aperfeiçoar, melhorar. Hoje estou satisfeito. Foi o maior investimento que eu poderia ter feito para a minha carreira.”    (Os grifos são nossos e abaixo está o link da entrevista completa)

Em destaque, o que Cristóvão disse que chamou a atenção. Ele fala em estudo, reciclagem, qualificação do passe, compactação, linhas próximas, disciplina tática, intensidade, velocidade e força. Quando perguntado sobre os treinadores brasileiros, achou exageradas as críticas, entretanto ressaltou que se qualificar foi o melhor investimento de sua carreira. Isso por que o momento era totalmente diferente. Na época, o Brasil tinha acabado de ganhar a Copa das Confederações. Agora, estamos na dolorosa era pós 7 a 1.

Reciclado, Cristóvão assumiu e o tricolor evoluiu. O time começou a encantar e chegou ao ápice contra o Goiás, quando assumiu a vice liderança. Acertando 93% dos passes com grande posse de bola, o Fluminense encorpou com a chegada de Henrique e principalmente Cícero, que além de armar é excelente finalizador. Em pesquisa feita pelo Linha de Passe da ESPN Brasil, após a vitória em cima do Goiás, o tricolor foi eleito como favorito ao título desse ano, até mesmo na frente do regular Cruzeiro.

Quando Cícero chegou, este falou ao seu treinador que gostaria de atuar como segundo volante, como estava fazendo no Santos ao lado de Arouca. Assim fez Cristóvão, o alocando ao lado de Jean. Mas, o comandante do Flu resolver mudar e colocou Cícero como extremo pela direita, para aproximá-lo de Conca e da área adversária. Então entrou Valencia e Cícero desandou a fazer gols, além de ajudar Conca na manutenção da bola.

Desde sua chegada, Cristóvão não abriu mão do 4-2-3-1, subindo a marcação para pressionar com o time compactado. Ao retomar, circulava a bola com propriedade no campo adversário, acertando quase todos os passes e fazendo os gols que precisava. Com Fred de férias após o fiasco na Copa e Walter visivelmente gordo, Sóbis passou a ser o centroavante, praticamente um falso nove pela movimentação constante.

Mas, contra o Coritiba as coisas começaram a mudar. Nesse jogo Gum se lesionou gravemente, Henrique não estava em campo e Sóbis machucou o ombro. Isso tudo além de Fred, que já havia voltado ao time na vitória contra o América em Natal pela Copa do Brasil. Sua inserção na equipe era praticamente uma obrigação, mas temia-se pela sua falta de movimentação. A pergunta era: será que Fred vai travar a moderna movimentação nas duas transições da equipe?

Depois veio o fiasco diante do América RN no Maracanã com a derrota por 5 a 2, o empate contra o Coritiba levando gol nos minutos finais e mais um revés diante do Botafogo. A pressão começou a pesar e Cristóvão, de repente, viu a corda apertar em seu pescoço. Já tinha errado contra o Botafogo ao tirar Cícero, um dos melhores em campo para colocar Walter ao lado de Fred. Para piorar, contra a Chapecoense veio uma decisão espantosa: a volta do 4-3-1-2 de Renato Gaúcho, com dois atacantes pesados na frente.

No flagrante de Otávio Martins, o Flu marcando forte o portador da bola com a linha de meio adiantando-se para atuar no campo adversário, uma das marcas do moderno time que estava encantando o país, ainda mais depois no fiasco da Copa que foi justificado pela falta de modernidade do nosso futebol.
Losango obsoleto a la Renato que perdeu de forma pálida para a Chapecoense no meio de semana e instaurou de vez a crise no clube. Cristóvão preferiu deixar Sóbis no banco e escalar dois homens de frente, com Conca de enganche e Cícero longe da área. Um time totalmente diferente daquilo que o treinador acredita e vinha aplicando desde sua chegada.

A partida contra o Sport, uma das equipes mais organizadas do campeonato era a chance de Cristóvão mostrar se continuaria nos traços da modernidade ou se entregaria ao retrocesso pela política de resultado que assola nosso futebol. A torcida queria a saída de Fred, muito mal após a Copa apesar de demonstrar vontade, o que infelizmente não basta. E também existia uma grande dúvida que, com certeza passava pela cabeça do treinador: será que o time tem como jogar de forma moderna com Fred de centroavante?

Fluminense 4 x 0 Sport: Cristóvão não tinha Wagner que estava machucado desde o início da semana e Carlinhos que estava suspenso. Diante do organizado Sport, o comandante tricolor voltou com o 4-2-3-1 simétrico com Sóbis pela esquerda e Cícero pela direita, onde se destacou demais em sua volta. Mas, os primeiros 30’ foram marcados pelo predomínio do Sport de Eduardo Batista. Como ressalta sempre o garoto João Elias, a compactação curta do Leão adiantou-se para o campo tricolor e fez o time da casa ficar sufocado sem conseguir trabalhar a bola. Felipe Azevedo foi colocado na direita para intensificar o ataque com Patric, a válvula de escape do time pernambucano.
Após o predomínio do Sport e uma bola na trave, o Fluminense teve um lampejo do time que encantou o país nos 15’ finais e conseguiu fazer dois gols. Bruno mergulhava no corredor aberto por Cícero, Jean era quase um armador, Conca rodava o campo todo para manter a bola no ataque e a equipe toda foi compactar-se no campo do adversário, do jeito que Cristóvão gosta e diz ter estudado.
No lance do primeiro gol do Flu, o time subiu as linhas na marcação e Edson, que entrou na vaga de Valencia contundido, tomou a bola de Patric e avançou, passando rapidamente para Fred. A roubada de bola subindo a marcação foi emblemática para um time que parecia flertar com o ostracismo. 

Na continuação da jogada mostrada acima, Fred dá o passe na medida para Cícero mergulhar no corredor e tocar na saída de Magrão. O meia voltou a ter liberdade para entrar na área, o que deve ser regra em qualquer opção tática decidida por Cristóvão. Apesar da compactação louvável nos 30’ iniciais, o Sport abusou de dar espaço à frente da zaga e às costas dos volantes.

Lance do segundo gol: Cícero rompeu e ganhou na passada larga de Renê. Após cruzar, Fred teve sobra de espaço para tomar a frente e cabecear de forma certeira. Percebam Patric atrasado na recomposição. Era para ele combater Fred junto ao zagueiro Oswaldo.

Na segunda etapa, ambas as equipes retornaram no 4-2-3-1. Eduardo Batista colocou Diego Souza e Ibson, mas o Sport pouco criou. A movimentação da linha de três meias, que foi destaque no primeiro tempo, nem ameaçou de aparecer na execução de jogo do Leão no segundo tempo. O Flu não voltou tão brilhante como terminara a etapa inicial, mas soube aproveitar muito bem os espaços deixados pela equipe do Sport, principalmente em sua intermediária. 
Nesse lance, a arbitragem marcou erradamente impedimento de Fred. Conca já havia feito o terceiro de falta, no início do segundo tempo. Percebam que Jean dá o passe livre e possuí três opções de passe com espaço para trabalhar. Sóbis está solto na entrada da área, Cícero livre pela beirada e Fred disparando entre os zagueiros.

Lance do quarto gol feito por Fred após cruzamento preciso de Bruno. Espaçado e inerte, o Sport abusou de dar espaço na entrada da área. Percebam o clarão na frente da zaga e a liberdade que Bruno tem para cruzar. 
Heat map do Fluminense (footstats, link abaixo): distribuição bem equânime pelo campo mostra menos incidência de compensações táticas e uma distribuição mais equilibrada pelo tablado.


Pela A Prancheta Tática, João Marcos Soares fez um paralelo entre o futebol da década de 90 e o atual, trabalhando em cima do lendário Palmeiras de 96, um dos melhores times montados por Luxemburgo. No trecho final que amarra a ideia central proposta, escreveu:

- A maior diferença do futebol moderno para o que se jogava no Brasil nos anos 90 e 2000 está no comparativo de importância entre qualidades individuais e estratégia de jogo. É necessário combinar as duas, mas, de fato, o que vem antes? As qualidades individuais até hoje pesam na hora de optar por um jogador ou outro em uma escalação, mas o dinamismo do futebol atual faz com que a escolha da estratégia de jogo em si e o encaixe dos atletas nela sejam mais importantes do que a popular ‘distribuição dos coletes’ para os melhores. Os meias, por exemplo, eram escolhidos baseado nas características individuais: passe, drible, velocidade, capacidade de organização (sim! Os meias organizavam o jogo a partir do meio-campo nos anos 90, não os volantes a partir da intermediária defensiva, como acontece hoje). Entre os volantes, os que tinham mais velocidade, preparo físico e capacidade de marcação saíam na frente, assim como os laterais, que tinham que ter boa técnica para o apoio e condições físicas para voltar para a marcação. Hoje em dia os critérios são um pouco diferentes. Nem sempre o meia mais habilidoso será o escolhido, por exemplo. Antes ele precisa ter noção de posicionamento para a recomposição defensiva e o preenchimento de espaços, além, obviamente, da qualidade para quebrar um sistema defensivo, que seriam drible, passe, etc. Assim como o volante, que não precisa mais ser um grande desarmador, mas, sim, combinar senso de marcação com passe qualificado e capacidade de organização. O atleta, por mais talentoso que seja, precisa, em primeiro lugar, se encaixar no sistema tático escolhido pelos técnicos.

E Cristóvão age com essa dicotomia de forma muito inteligente. Privilegia a tática, porém não abre mão de usar os melhores, se pautando não na mudança de jogador, mas na evolução da inteligência tática de todo o grupo. Cícero queria o meio, porém foi demonstrado ao próprio pelo treinador que o grupo já tem Jean que faz a função, sendo que como extremo estaria mais perto do gol. Deu certo. Hoje, o próprio Cícero entendeu suas novas funções que propicia a escalação dos melhores e tem gostado de atuar no setor.

A movimentação de Fred durante todo o jogo também responde a pergunta feita no início do texto: o time pode ser moderno com Fred? Sim, Cristóvão já respondeu. Mesmo com o time jogando “em função” do camisa nove, isso não o exime de brigar por espaço na frente e ajudar na transição defensiva. É tudo uma questão de dogma que Cristóvão, dentro de seus estudos, construiu uma forma nova de trabalhar modernizando aquilo que temos aqui, ao invés de entrar nessa utopia de uma nova realidade em nosso futebol. A mentalidade social é o que muda mais lentamente e, com o futebol, não será diferente. É torcer para que trabalhos como esse indiquem um novo caminho, afinal ainda não conseguimos dissociar eficiência de resultado. E viva aos dogmas! Abraço!


Referências:



Por Victor Lamha de Oliveira
(@vlamhaoliveira)