Depois do 7 a 1 diante da Alemanha, quase
todas as análises dos times brasileiros, atuais ou históricas, traçam em sua
pauta um paralelo entre o que está acontecendo por aqui e o nosso alegado
atraso tático perante ao futebol europeu, tido como moderno, intenso,
estratégico e maleável, sem as malsinadas compensações obsoletas. Quando o SPFC
venceu o Inter, por exemplo, o foco não foi o jogo, mas jogadores como Kaká e
Ganso se doando e alocados como preceitua o futebol moderno.
Renato Gaúcho é tido como um treinador
boleiro e ultrapassado. No início do ano, iniciou o trabalho usando o 4-2-3-1
com Conca na meia central e Sóbis jogando como um extremo que se portava como
atacante quando o time tinha a bola. Entretanto, o esquema da moda não agradava
Renato. Em sua concepção, a recomposição de Sóbis não era satisfatória e
obrigava Conca marcar muito. Como a defesa era frágil e o time tinha Sóbis,
Walter e Fred no elenco, além de Conca, não resistiu ao 4-3-1-2.
E o problema não foi o 4-4-2 losango, mas sim
sua execução pálida e obsoleta. Nada de novo em nenhuma das transições. Renato
não conseguiu fazer o time jogar e a derrota para o Horizonte do Ceará por 3 x
0 na Copa do Brasil foi o estopim. Após a campanha ruim no Carioca, caiu o
treinador motivador e o Fluminense foi atrás de um comandante mais estudioso e
atualizado. No início de abril, Cristóvão Borges foi anunciado como o novo
técnico do tricolor carioca.
Saiu
Renato que via os volantes como, primeiramente, destruidores das jogadas
adversárias e entrou Cristóvão, técnico que gosta de ver os volantes e meias
atuando intensamente na transição ofensiva. A esperança era um time mais
moderno, objetivo e equânime. Após sair do Vasco, Cristóvão dedicou mais de
seis meses a um grupo de estudos. Nele, definiu várias coisas, como um método
de treinamento. No dia 04 de agosto de 2013, ao se destacar em sua volta no
Bahia deu uma entrevista sensacional.
“GLOBOESPORTE.COM:
Depois que saiu do Vasco, você passou seis meses sem treinar nenhum clube. Em
entrevistas recentes, você afirma que passou esse período estudando. O que
exatamente foi alvo de seus estudos?
Cristóvão
Borges: Eu estudei métodos de
treinamento. Tenho um método de treinamento, claro, que é o que eu trabalhava
no Vasco. Eu procurei aperfeiçoar esse método para atingir aquilo que penso do
futebol, aquilo que quero que um time que treino faça. Eu vejo que aqui no
Brasil, a gente precisa dar uma melhorada nessa questão. Fui justamente
pesquisar e estudar treinamentos, olhar como se está treinando e jogando nos
melhores campeonatos do mundo. Pesquisei bastante, li muito, assisti muitos
vídeos. Justamente para isso. Me preparei, busquei aperfeiçoar meus métodos.
Aí apareceu o Bahia.
GLOBOESPORTE.COM:
Houve algum foco específico na parte técnica ou tática?
Cristóvão
Borges: Foi geral. Tanto na parte técnica
quanto tática. Para melhorar o desempenho do time, jogar com melhor
qualidade, melhor nível, errando menos passes. Também para ter um
posicionamento mais compacto, uma equipe mais disciplinada
taticamente. Foi basicamente isto que busquei nos meus estudos.
GLOBOESPORTE.COM:
O que você via na fórmula antiga que você considerava que não estava certa ou
que poderia melhorar?
Cristóvão
Borges: Começa pelos passes. Aqui se
troca poucos passes e se erra muito, algumas vezes passes fáceis. Claro que
isso se deve também a qualidade dos campos no país. Acho que com as arenas mais
modernas isso tende a melhorar. Já vimos que a qualidade do jogo melhora nesses
estádios. Era o que me incomodava bastante. Outra coisa é questão de
posicionamento, a forma que os times jogavam de forma mais espaçada. Queria que
minha equipe jogasse em compactação, com as linhas mais próximas. Isso que
eu desejo e para isso que eu trabalho.
GLOBOESPORTE.COM:
Você fala da valorização dos passes, algo que a escola espanhola, com o
Barcelona e a seleção, tem feito bastante. Eles serviram de referência?
Cristóvão
Borges: A Espanha, pela qualidade de passe,
mas não é único modelo. Temos o Bayern de Munique e o Borussia Dortmund, que
também têm qualidade na troca de passes, intensidade de jogo, velocidade e
força. São essas coisas que a gente procura aproximar. Trabalhar de uma
forma aqui no Brasil com algumas coisas que eles fazem, adaptadas para a nossa
realidade, para o estilo de nossos jogadores. Foi isso que fui estudar, para
trazer algumas coisas que pudessem beneficiar meu trabalho daquilo que entendo
que uma equipe pode fazer para jogar de forma eficiente.
GLOBOESPORTE.COM:
Recentemente o presidente do São Paulo, Juvenal Juvêncio, e o técnico Paulo
Autuori criticaram os técnicos brasileiros, que estariam ultrapassados. Você
concorda com esse pensamento?
Cristóvão
Borges: Acho que tem um pouco de exagero. Os
treinadores brasileiros são muito bons. Acho que em qualquer profissão
existe a necessidade de aperfeiçoamento, de reciclagem, de avaliação. Foi isso
que fiz. Avaliei o que tinha acontecido comigo no período que fiquei no Vasco.
Na minha avaliação, precisava colocar algumas coisas em questão e fui buscar. É
mais uma questão pessoal e acho que esse tempo parado foi muito bom. Vi que
precisava aperfeiçoar, melhorar. Hoje estou satisfeito. Foi o maior
investimento que eu poderia ter feito para a minha carreira.” (Os grifos são nossos e abaixo está o link
da entrevista completa)
Em
destaque, o que Cristóvão disse que chamou a atenção. Ele fala em estudo,
reciclagem, qualificação do passe, compactação, linhas próximas, disciplina
tática, intensidade, velocidade e força. Quando perguntado sobre os treinadores
brasileiros, achou exageradas as críticas, entretanto ressaltou que se
qualificar foi o melhor investimento de sua carreira. Isso por que o momento
era totalmente diferente. Na época, o Brasil tinha acabado de ganhar a Copa das
Confederações. Agora, estamos na dolorosa era pós 7 a 1.
Reciclado,
Cristóvão assumiu e o tricolor evoluiu. O time começou a encantar e chegou ao
ápice contra o Goiás, quando assumiu a vice liderança. Acertando 93% dos passes
com grande posse de bola, o Fluminense encorpou com a chegada de Henrique e
principalmente Cícero, que além de armar é excelente finalizador. Em pesquisa
feita pelo Linha de Passe da ESPN Brasil, após a vitória em cima do Goiás, o
tricolor foi eleito como favorito ao título desse ano, até mesmo na frente do
regular Cruzeiro.
Quando
Cícero chegou, este falou ao seu treinador que gostaria de atuar como segundo
volante, como estava fazendo no Santos ao lado de Arouca. Assim fez Cristóvão,
o alocando ao lado de Jean. Mas, o comandante do Flu resolver mudar e colocou
Cícero como extremo pela direita, para aproximá-lo de Conca e da área
adversária. Então entrou Valencia e Cícero desandou a fazer gols, além de
ajudar Conca na manutenção da bola.
Desde
sua chegada, Cristóvão não abriu mão do 4-2-3-1, subindo a marcação para
pressionar com o time compactado. Ao retomar, circulava a bola com propriedade
no campo adversário, acertando quase todos os passes e fazendo os gols que
precisava. Com Fred de férias após o fiasco na Copa e Walter visivelmente
gordo, Sóbis passou a ser o centroavante, praticamente um falso nove pela
movimentação constante.
Mas,
contra o Coritiba as coisas começaram a mudar. Nesse jogo Gum se lesionou gravemente,
Henrique não estava em campo e Sóbis machucou o ombro. Isso tudo além de Fred,
que já havia voltado ao time na vitória contra o América em Natal pela Copa do
Brasil. Sua inserção na equipe era praticamente uma obrigação, mas temia-se
pela sua falta de movimentação. A pergunta era: será que Fred vai travar a
moderna movimentação nas duas transições da equipe?
Depois
veio o fiasco diante do América RN no Maracanã com a derrota por 5 a 2, o empate
contra o Coritiba levando gol nos minutos finais e mais um revés diante do
Botafogo. A pressão começou a pesar e Cristóvão, de repente, viu a corda
apertar em seu pescoço. Já tinha errado contra o Botafogo ao tirar Cícero, um
dos melhores em campo para colocar Walter ao lado de Fred. Para piorar, contra
a Chapecoense veio uma decisão espantosa: a volta do 4-3-1-2 de Renato Gaúcho,
com dois atacantes pesados na frente.
A
partida contra o Sport, uma das equipes mais organizadas do campeonato era a
chance de Cristóvão mostrar se continuaria nos traços da modernidade ou se
entregaria ao retrocesso pela política de resultado que assola nosso futebol. A
torcida queria a saída de Fred, muito mal após a Copa apesar de demonstrar
vontade, o que infelizmente não basta. E também existia uma grande dúvida que,
com certeza passava pela cabeça do treinador: será que o time tem como jogar de
forma moderna com Fred de centroavante?
No lance do primeiro gol do Flu, o
time subiu as linhas na marcação e Edson, que entrou na vaga de Valencia
contundido, tomou a bola de Patric e avançou, passando rapidamente para Fred. A
roubada de bola subindo a marcação foi emblemática para um time que parecia
flertar com o ostracismo.
![]() |
Heat map do Fluminense (footstats,
link abaixo): distribuição bem equânime pelo campo mostra menos incidência de
compensações táticas e uma distribuição mais equilibrada pelo tablado.
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Pela
A Prancheta Tática, João Marcos Soares fez um paralelo entre o futebol da
década de 90 e o atual, trabalhando em cima do lendário Palmeiras de 96, um dos
melhores times montados por Luxemburgo. No trecho final que amarra a ideia
central proposta, escreveu:
- A maior diferença do futebol moderno
para o que se jogava no Brasil nos anos 90 e 2000 está no comparativo de
importância entre qualidades individuais e estratégia de jogo. É necessário
combinar as duas, mas, de fato, o que vem antes? As qualidades individuais até
hoje pesam na hora de optar por um jogador ou outro em uma escalação, mas o
dinamismo do futebol atual faz com que a escolha da estratégia de jogo em si e
o encaixe dos atletas nela sejam mais importantes do que a popular
‘distribuição dos coletes’ para os melhores. Os meias, por exemplo, eram
escolhidos baseado nas características individuais: passe, drible, velocidade,
capacidade de organização (sim! Os meias organizavam o jogo a partir do
meio-campo nos anos 90, não os volantes a partir da intermediária defensiva,
como acontece hoje). Entre os volantes, os que tinham mais velocidade, preparo
físico e capacidade de marcação saíam na frente, assim como os laterais, que
tinham que ter boa técnica para o apoio e condições físicas para voltar para a
marcação. Hoje em dia os critérios são um pouco diferentes. Nem sempre o meia
mais habilidoso será o escolhido, por exemplo. Antes ele precisa ter noção de
posicionamento para a recomposição defensiva e o preenchimento de espaços,
além, obviamente, da qualidade para quebrar um sistema defensivo, que seriam
drible, passe, etc. Assim como o volante, que não precisa mais ser um grande
desarmador, mas, sim, combinar senso de marcação com passe qualificado e
capacidade de organização. O atleta, por mais talentoso que seja, precisa, em
primeiro lugar, se encaixar no sistema tático escolhido pelos técnicos.
E Cristóvão age com essa dicotomia de forma
muito inteligente. Privilegia a tática, porém não abre mão de usar os melhores,
se pautando não na mudança de jogador, mas na evolução da inteligência tática
de todo o grupo. Cícero queria o meio, porém foi demonstrado ao próprio pelo
treinador que o grupo já tem Jean que faz a função, sendo que como extremo
estaria mais perto do gol. Deu certo. Hoje, o próprio Cícero entendeu suas
novas funções que propicia a escalação dos melhores e tem gostado de atuar no
setor.
A movimentação de Fred durante todo o jogo também responde a pergunta feita no início do texto: o time pode ser moderno com Fred? Sim, Cristóvão já respondeu. Mesmo com o time jogando “em função” do camisa nove, isso não o exime de brigar por espaço na frente e ajudar na transição defensiva. É tudo uma questão de dogma que Cristóvão, dentro de seus estudos, construiu uma forma nova de trabalhar modernizando aquilo que temos aqui, ao invés de entrar nessa utopia de uma nova realidade em nosso futebol. A mentalidade social é o que muda mais lentamente e, com o futebol, não será diferente. É torcer para que trabalhos como esse indiquem um novo caminho, afinal ainda não conseguimos dissociar eficiência de resultado. E viva aos dogmas! Abraço!
Referências:
Por Victor Lamha de Oliveira
(@vlamhaoliveira)